sexta-feira, 7 de novembro de 2014
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O Discurso sobre Deus em Lév
inas: Perspectiva teológica ou f
ilosófica?
Patrícia Simone do Prado
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No rosto do outro, o vestígio de Deus
E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando
-
o, e dizendo: Mestre, que farei para
herdar a vida eterna? E e
le lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? E, respondendo ele,
disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as
tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. E disse
-
lhe:
Respo
ndeste bem; faze isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar
-
se a si mesmo, disse a
Jesus: E quem é o meu próximo? E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de
Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e
espanca
ndo
-
o, se retiraram, deixando
-
o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo
caminho certo sacerdote; e, vendo
-
o, passou de largo. E de igual modo também um levita,
chegando àquele lugar, e, vendo
-
o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem,
chegou ao pé dele e, vendo
-
o, moveu
-
se de íntima compaixão; E, aproximando
-
se, atou
-
lhe as
feridas, deitando
-
lhes azeite e vinho; e, pondo
-
o sobre a sua cavalgadura, levou
-
o para uma
estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros
, e deu
-
os ao
hospedeiro, e disse
-
lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando
voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos
salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com el
e. Disse, pois, Jesus: Vai, e
faze da mesma maneira.
Evangelho de Lucas capítulo 10 versos 25
-
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O pensamento de Lévinas
(1905
-
1995)
ocupa um espaço significativo na filosofia,
não sendo
, contudo,
fácil seu entendimento
.
Nascido em
Kaunas, Lituânia,
Em
manuel
Lévinas de origem judia,
vivenciou os horrores da guerra e tais experiências aparecem em seu
pensamento. A inquietação do século vivido marca sua escrita. A dominação do homem sobre
outro homem, a violência e a injustiça ganha corpo no discurso que
pede uma ética, uma ética
da alteridade.
Lévinas fora influenciado por autores como Edmund Husserl, de quem foi tradutor,
Martin Heidegger e Franz Rosenzweing. Para Lévinas a Ética e não a Ontol
ogia seria a
Filosofia primeira e
no envolvimento com o outro
é
que o Infinito se apresenta e assim vem a
idéia sobre o Mesmo.
O discurso sobre Deus em Lévinas: um ateísmo teológico?
Deus não pertence
à
ordem do tema, assim não se pode nomea
-
lo. Falar sobre Deus é
falar de um Outro, que não se restringe a nomeaç
ão de “ser” mas que antes é um Outro e é o
1
Mestre em Ciências da Religião pela PUC Minas
ppsprado@hotmail.com
2
Mesmo. Se quisermos compreender Deus temos que começar a reflexão pelo homem e sua
situação existencial e não em Deus. A pergunta deve ser sobre o mundo e não sobre Deus.
O pensamento de Lévinas, que encontra
-
se
entre os que formulam um pensamento
sobre Deus dentro da fenomenologia, é um pensamento que encontra na relação com o Outro
a imagem de Deus e não o que seja Deus.
Lévinas parece não se preocupar tanto com a
nomeação do
“
ser
transcendente
ou Deus
” também c
hamado por ele de Infinito, mas
sim na
ação
desse
“
ser
”
entre a criação. U
ma nova proposta de pensar a difer
ença ontológica sem a
ontologia; u
ma proposta complexa para os que se firmam no pensamento ocidental.
As relações que se estabelecem entre o ser se
parado e o Infinito resgatam o que
constituía uma diminuição na contração criadora do Infinito.O homem resgata a
criação. A sociedade com Deus não é acréscimo a Deus, nem uma diminuição do
intervalo que separa Deus da criatura. Em contraposição à totalizaç
ão, chamamo
-
la
religião. A limitação do Infinito criador e a multiplicidade são compatíveis com a
perfeição do Infinito [...]. Assim, o Infinito retrai
-
se da dimensão ontológica e abre
para si mesmo a ordem do bem. No evento da criação ex
nihilo
, produzem
-
se duas
realidades irredutíveis, por um lado, uma existência gratuita e, por outro, um Deus
que, mesmo na sua transcendência, na sua absolutidade, deixa rastros.(
BACCARINI
,
2000, p.423)
Nessa construção não se declara a morte de Deus, mas diz
-
se de uma
separação da
criação e do Infinito, algo essencial da existência criadora. O pensamento ocidental sobre
Deus é marcado por uma dependência da nomeação e tal nomeação não apenas cria
significado
, mas
aprisiona a idéia sobre Deus em um discurso próprio, não
necessariamente o
discurso verdadeiro sobre Deus. Ao dizer “Deus é” limitamos toda sua existência e
capacidade de revelação em um pensamento egoísta e finito. A linguagem não consegue
revelar o que ou quem Deus é. E do que não se pode dizer deve se calar.
O infinito então deixa rastros, rastros que levam
a
busca de sua compreensão; rastros
que guiam a consciência do Eu, do Mesmo, do Outro. O Infinito se esconde, pois sua
existência, que se dá na separação da criação, leva a essa separação, a essa “fuga” ne
cessária a
sua revelação paulatina ao finito. E onde Ele se esconde? Para onde levam seus rastros?
Seguindo os rastros de Deus: a busca pela sua revelação
Baccarini diz que “a transcendência é o absoluto que se recusa à imanência do
discurso, mesmo ao
discurso da diferença ontológica (BACCARANI, 2000, p.424). Se o
Infinito foge a esse discurso, quem o poderá revelar? Quem revelará a transcendência?
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O dialogo é a porta que se abre para o outro e para mim. Quando Eu e Tu nos
permitimos essa ação, começa o acolhimento. Ir de encontro ao outro é abrir mão de
pressupostos, de conce
itos, é estar disposto a quebrar paradigmas. A objetivação da ética se
dá nessa ação, ação de abrir
-
se ao desconhecimento em prol de uma
convivência pací
fica.
A responsabilidade nesse momento não se limita apenas ao respeito
às
leis morais de
uma socieda
de
, mas
vai além, além de uma ética
-
moral. A ética da alteridade traz um novo
conceito de justiça, pois agora o outro se torna razão da minha preocupação. Minhas
atitudes devem ser pensadas e pensadas em direção ao outro que é diferente de mim
, mas
faz par
te de mim
à
medida que revela minha finitude, minhas solicitudes existências.
O outro no pensamento de Lévinas é uma “peça” importante no desenvolvimento
do
eu
e no conhecimento sobre Deus. A representação de Deus no consciente humano, ou na
consciência h
umana em estado de vigilância, de insônia, permite a retomada dos aspectos
inerentes a seu ser, tais aspectos são vivenciados no mundo e não na transcendência.
A eleidade de Lévinas: noção chave no discurso sobre Deus
Se o pensamento ocidental é um pen
samento que se forma na intencionalidade da
ação, em
Lévinas ocorre uma reviravolta n
essa intencionalidade: a subversão do ser.
Deus,
agora, se retrai na terceira pessoa e se esc
onde em seu rastro. Eu, Tu, Ele;
Ele esse que se
deixa revelar pelo Eu e Tu.
Desse encontro entre o Eu e Tu nasce uma intencionalidade agora voltada para o bem,
pois a minha definição se dará dessa relação. Para Lévinas tal relação revela a moral e essa
traz a consciência não apenas do que sou
, mas
de Deus.
A eleidade é a noção c
have no discurso de Lévinas sobre Deus e Baccarani diz que,
Para captar a eleidade em todo o seu alcance inédito é preciso, mais uma vez,
remeter
-
se à noção/evento de criação
em que a relação do homem com Deus se diz
em termos de passado. Um passado que p
esa sobre a consciência e a inverte em
passividade. Só na passividade da consciência teórica pode ressoar um mandamento
moral que me é imediatamente significado pelo rosto do outro homem: “Não
matarás!”
O rosto que me fala se produz como visitação, transce
ndência
significante do rastro, e a visitação consiste em subverter o egoísmo mesmo do eu.
O rosto desconcerta a intencionalidade que o tem em mira. (BACCARANI, 2000,
p.431)
Esse neologismo criado por Lévinas, a eleidade, absorve todo o significado do me
u
encontro com o outro. A sujeição ao outro é o modo que encontro para remeter ao Infinito
ou para Deus todo o desejo que tenho de proximidade com o outro, proximidade essa que
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me concede a oportunidade de fazer o bem mesmo que esse não esteja aberto a ess
a ação.
Sou assim impelid
o a agir de forma ética e de alteridade, pois
o encontro com o outro me
remete a lembrança da transcendência. Não há como escapar do Seu olhar.
A presença do Infinito na razão leva o homem a desejar o desejo do Infinito. Tal
desej
o não pode ser saciado
, pois
encontra
-
se na esfera do Bem, do desejo desinteressado
que quer sempre mais, pois, “Ele não me cumula de bens, mas me submete a bondade, o
melhor dos bens que se recebe.” (LÉVINAS
apud
BACCARANI, 2000, p.430)
.
Considerações Fi
nais
“Quando devo dizer algo sobre Deus, faço
-
o sempre a partir das relações humanas”,
diz Lévinas. (LÉVINAS,
apud
BACCARANI, 2000, p.430). Pensando sobre essa
afirmação, como poderíamos, nesse tempo, falar sobre Deus? Em qual discurso caberia sua
presen
ça?
O discurso da alteridade ou do e
u?
O discurso sobre Deus em Lévinas revela não apenas um pensar talvez acima da razão
e da efetivação humana, mas revela antes de tudo nossa finitude e pequenez diante do outro,
diante de Deus.
Pensar Deus sob a perspec
tiva leviniasiana não é nada fácil, pois ele nos
convida a despir
-
se de toda nossa intolerância e prepotência e ir de encontro ao outro, um
outro que muitas vezes não deseja esse encontro. E o que faremos nesse momento?
Bombas, destruição, morte. O homem
lobo do homem. O homem que destrói a
imagem da criação. O homem que mata Deus. Estamos diante de um século que se mostra
cada vez mais fechado ao dialogo
, mas
que se diz aberto ao novo, a globalização! O que se
pode esperar de um homem que rompe as frontei
ras naturais e causa assim conflitos
étnicos? Que assiste a morte de milhares em campos de refugiados em um lugar que ele nem
sabe onde fica?
Se a ética da alteridade é um discurso utópico e sem sustentação eu gostari
a que
muitos apostassem nele. “A terra
geme a espera da redenção” e enquanto ela não chega o
que faremos? Continuaremos a assistir indiferentes a destruição da criação de Deus?
E viu Deus que tudo que fizera era bom. A fala do narrador bíblico sobre a obra da
criação a conhecemos, mas qual
se
rá a fala de Deus quando Ele
voltar seus olhos para o que
fizeram de sua criação? Eis a questão.
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Referências Bibliográficas
BACCARANI, Emilio. Dizer Deus “outramente”.
In: P
ENZO
, Giorgio; GIBELLINI, Rosino
(org.)
.
Deus na filosofia do século XX.
Trad.
Roberto Leal Ferreira. 2.ed. São Paulo: Loyola,
2000. p.421
-
432.
LÉVINAS, Emmanuel. Deus e a filosofia. In: _
De Deus que vem à idéia.
Trad. Pergentino
Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 2002. p.85
-
114.
HUTCHENS, B.C. Deus e ateísmo. In: _ Compreender Lévinas. Trad. Vera Lúcia Mello
Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 155
-
176.
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