sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A prática litúrgica como alegoria mítico-poética Elisângela de Jesus Santos 1 Herbert Baldus (1979), ao retratar o mito tupi-guar ani acerca do “ roubo do fogo por animais ” conta que este “é um motivo muito espalhado na Am érica do Sul” (BALDUS, 1979, p. 123). Nestes mitos, ora a grande ladra é a raposa, ora é o sapo . Este anfíbio prevalece nas tribos da “grande famíli a lingüística dos Tupí. Que haja sido escolhido para tal papel é muito compreen sível pois, como se sabe, este animal tem a capacidade singular de engolir coisas ardentes, como cigarros e brasas, talvez porque os tome por pirilampos” (BALDUS, 1979 , p. 123). Os Guaraní do litoral paulista (Itanhaém) relatam e ste mito do sapo. O mesmo reaparece entre outros povos indígenas da América d o Sul, como na Bolívia e no Paraguai. Sabemos que os mitos têm vida num context o de oralidade, mas suas transcrições podem nos ajudar a ilustrar melhor uma questão. O mito conta o seguinte: Uma vez havia um homem que não tinha fogo. Os urubu s-pretos tinham o fogo. O homem banhou-se em água fétida, pe gou um pau, deitou-se por terra fingindo-se de morto. Os urubus vieram e fizeram fogo para comê-lo. Então ele se levantou prontament e, lançando as brasas na direção em que o sapo estava sentado. O s apo tomou um pedaço na boca e engoliu-o. Os urubus voltaram, mas o fogo estava apagado. Então acharam o sapo, suspeitaram que ele tivesse roubado o fogo e forçaram-no a jogar fora a brasa. O homem ba nhou-se outra vez em água fétida, deitou-se por terra com um pau na mão, fingindo- se de morto. Os urubus vieram e fizeram fogo para c omê-lo. Ele levantou-se prontamente, lançando as brasas na dire ção em que o sapo estava sentado. O sapo tomou um pequeno pedaço na b oca e engoliu- o. Os urubus voltaram, mas o fogo estava apagado. E sta vez, porém, o sapo tinha-se escondido tão bem que os urubus não o apanharam. Desde aquele tempo, os Guarayú têm fogo (BALDUS, 19 79, p. 123- 4). 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência s Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara, São Paulo. Doutoranda visitante do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Catavento: Redes e Territórios de Culturas e Identidades, grupo de estudos vinculado ao NUPE/CLADIN/LEAD. Bol sista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. A retomada da mitologia indígena deve-se ao fato d e que o cururu originalmente estaria vinculado a este universo. A etimologia rem ete o termo “ cururu ” à figura mitológica do cururu , em tupí 2 , ou a palavra derivaria de uma corruptela de cruz: “ curuzu ”. Na atualidade, o cururu é cantoria de improviso ou desafio explícito acompanhado pela viola caipira e realizada em dupla s de cantadores. Inicialmente vinculada à devoção ao Divino Espírito Santo na reg ião do Médio Tietê paulista, atualmente é forma de poética, de brincadeira, jogo lúdico, memória, sociabilidade e forma de transmitir conhecimentos realizada por gru pos caipiras na região. Além deste significado atrelado à cruz e, portanto, à conversão ameríndia ao cristianismo, outros sentidos aparecem nas narrativ as dos cururueiros. Em entrevista realizada em 2008, Cido Garoto fala do caruru , uma planta de folhas grossas da qual as mulheres preparavam uma sopa para acolher os devoto s do Divino durante os pousos. Ao apontar esta outra relação, o cururueiro ressalt a que “ninguém sabe” de onde vem o nome, assinalando a imprecisão do termo associada à oralidade e indicando sua grande capacidade de transformação e potencialidade modifi cadora dos conteúdos da narrativa. Outras versões sobre o mito do sapo, como a dos Ta pirapé, contam que o cururu teria roubado o fogo dos índios para se aquecer (BA LDUS, 1979, p. 124). Eis que o sujeito do mito, neste caso, é o próprio sapo. Inde pendentemente das versões aqui apresentadas, o fato é que uma das principais carac terísticas da práxis indígena é a celebração de ritos que envolvem danças e cantos mu ito relacionados ao fogo, ou à fogueiras. De toda forma, cantos e danças do cerimonial nativo teriam sido “apropriados” para aproximar o indígena da doutrina católica, via bilizando o processo de catequese. Poderíamos dizer, no sentido da colonização, que o fogo é então tomado do índio pelo colonizador, de modo que o sapo aqui aparece como s endo a tradução, uma espécie de mediação da disputa pelo fogo (que aqui adquire os sentidos de língua e linguagem) entre os homens do velho e novo mundo (colonizadore s e colonizados). A alegoria exerce um poder singular de persuasão, n ão raro terrível pela simplicidade de suas imagens e pela uniformida de da leitura coletiva. Daí seu uso como ferramenta de aculturaçã o, daí sua presença desde a primeira hora da nossa vida espiri tual, plantada na 2 cururu (abanheenga) = sapo (língua portuguesa) conforme Al ceu Maynard de Araújo (2004) indicou na referência descrita por Basílio de Magalhães. Há ai nda, segundo indicação do próprio Alceu, cururu com sentido de “rouco”, conforme teria apontado Batista Caetano (ARAÚJO, 2004, p. 84).

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